As lentes regulatórias demoraram a mirar o território distante da população de baixa renda. Quando se voltaram finalmente para a base da pirâmide social, a construção da proteção da população pobre ganhou escala gradual em quase duas décadas. A regulamentação do microsseguro, formalizada em 2011, não foi, porém, o ponto de partida, mas o resultado de um processo contínuo iniciado ainda no começo dos anos 2000. Passo a passo, um arcabouço regulatório, institucional e cultural permitiu transformar uma ideia de inclusão financeira em política pública estruturada e, mais tarde, em um segmento com identidade própria. Resultado: hoje a arrecadação de prêmios dos microsseguros de danos e de pessoas supera a casa de R$ 1 bilhão (no acumulado até setembro R$ 1,2 bi), com liderança das proteções pessoais (receita de R$ 996,7 milhões).
As primeiras ações da Superintendência de Seguros Privados (Susep) voltadas ao público de baixa renda remontam a 2003, em consonância com diretrizes governamentais de ampliação do acesso a serviços financeiros. A estratégia inicial foi pragmática: estimular produtos mais simples, de menor custo e com regras padronizadas, capazes de dialogar com um público até então excluído do mercado segurador.
O marco inaugural foi a Circular Susep nº 267/2004, a primeira norma sobre seguro de vida em grupo popular. Na sequência, a Circular nº 306/2005, dedicada ao seguro popular de automóvel, reforçou o movimento. Ambas tiveram um efeito simbólico e prático: despertaram o interesse da indústria seguradora para um novo nicho e sinalizaram que havia espaço regulatório para inovação com foco social.
No mesmo período, medidas complementares ajudaram a criar um ambiente mais favorável. O Decreto nº 5.172/2004, ao reduzir o IOF do ramo Vida — de 7% para 2%, chegando a zero em 2006 —, teve impacto direto na atratividade dos produtos. Já a Resolução CNSP nº 110/2004, ao instituir ouvidorias nas seguradoras, fortaleceu a proteção do consumidor, especialmente dos segmentos mais vulneráveis.
O microsseguro entra na agenda institucional
O ano de 2008 marca a virada conceitual. Em abril, o ato do CNSP nº 10/2008 criou a Comissão Consultiva de Microsseguros, reunindo governo, regulador, mercado, corretores e academia. A missão era clara: estudar o tema em profundidade e assessorar o Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) na construção de uma regulação adequada à realidade brasileira.
Pouco depois, em junho, a Susep instituiu o Grupo de Trabalho de Microsseguros (GT Susep), por meio da Portaria nº 2.960. Formado por técnicos de diferentes áreas da Autarquia, o GT produziu relatórios técnicos decisivos e contribuiu, inclusive, para o debate legislativo, com proposta de substitutivo ao PL nº 3.266/2008, que tratava do tema no Congresso Nacional.
A estratégia de escuta e diálogo se ampliou com a realização dos Workshops de Microsseguros, em 2009, no Rio de Janeiro e em Brasília. Os encontros reuniram reguladores, mercado, formuladores de políticas públicas e especialistas internacionais, consolidando uma visão compartilhada sobre os desafios fiscais, sociais e operacionais do microsseguro no País.
2011: a regulamentação possível
Diante da demora na tramitação do projeto de lei, a Susep concluiu que poderia avançar dentro de sua esfera de competência. Em setembro de 2011, foi criado um grupo de trabalho para elaborar regras específicas para o desenvolvimento do microsseguro. O resultado foi a Resolução CNSP nº 244/2011, verdadeiro divisor de águas.
A norma estabeleceu diretrizes gerais para o segmento, com foco na regulação de produtos, na regulação prudencial e na conduta de mercado, delegando à Susep a normatização técnica e operacional. Nos meses seguintes, uma série de circulares detalhou o funcionamento do sistema — desde a autorização de sociedades até a atuação de corretores e correspondentes de microsseguro, além da possibilidade de contratação por meios remotos.
Em 2021, em linha com a agenda de simplificação regulatória, a Resolução nº 244 foi substituída pela Resolução CNSP nº 409, que consolidou princípios e características gerais do microsseguro, com maior flexibilidade para o desenho de produtos e estímulo à inovação.
Influência internacional e protagonismo brasileiro
Paralelamente à agenda doméstica, o Brasil assumiu protagonismo no debate internacional. Desde 2006, a Susep participa de fóruns globais sobre microsseguros, com destaque para o Grupo de Trabalho Conjunto IAIS–Microinsurance Network (JWG-MI). Entre 2007 e 2012, o País presidiu o grupo — um feito inédito — e ajudou a formular documentos de referência mundial sobre regulação e supervisão de microsseguros e seguros inclusivos.
Esse intercâmbio internacional influenciou diretamente o modelo regulatório brasileiro, alinhado aos Princípios Básicos de Seguros da IAIS e às diretrizes do G20 para inclusão financeira. A realização, no Rio de Janeiro, da 7ª Conferência Internacional de Microsseguro, em 2011, simbolizou esse reconhecimento.
O balanço: inclusão gradual e desafios persistentes
Passados quase 20 anos desde as primeiras iniciativas, o microsseguro se consolidou como instrumento de inclusão financeira, ainda que longe de atingir todo o seu potencial. Dados setoriais indicam uma trajetória de crescimento gradual desde 2012, com expansão do número de apólices, diversificação de produtos — especialmente em vida, acidentes pessoais e assistência — e maior uso de canais alternativos de distribuição.
Ao longo da década passada, o segmento acumulou dezenas de milhões de coberturas ativas, com evolução ano a ano acompanhando o avanço regulatório, a digitalização e as parcerias com instituições financeiras, varejistas e programas sociais. O volume de prêmios ainda representa uma fração modesta do mercado total, mas o impacto social — em proteção financeira básica para famílias de baixa renda e microempreendedores — é o principal indicador de sucesso.
Mais do que números, o microsseguro deixou como legado uma mudança de paradigma: a ideia de que o seguro pode — e deve — ser desenhado a partir das necessidades reais da população. Entre ajustes normativos, aprendizado institucional e cooperação internacional, o Brasil levou quase duas décadas para fazer o microsseguro brilhar. O próximo desafio é ampliar escala, inovação e educação securitária, para que essa luz alcance ainda mais brasileiros.
Fonte: CNSEG








