Marcio Serôa de Araujo Coriolano*

Por sua dimensão e relevância na vida do Brasil, o setor segurador brasileiro, nele incluídos o seguro, a previdência complementar aberta, a capitalização e a saúde suplementar, tem exigido avanço consistente do Direito do Seguro. Considero de suma importância a discussão dos temas desse campo do conhecimento tão rico em sua dimensão teórica e tão importante para nossa atividade. Peço licença para, como economista que sou por formação, abordar e comemorar a progressiva incorporação dos fundamentos e avanços teóricos e metodológicos da Economia dos Seguros ao Direito Securitário.

Essa mescla de especialidades tem servido para o melhor entendimento e superação da judicialização que ainda impacta fortemente o mercado de seguros, a começar por extinguir o mito que atribui a judicialização exclusivamente a falhas regulatórias. Felizmente, hoje cresce o entendimento de que é exatamente o contrário: quanto mais se regula, quanto mais se desce a minúcias em cada parágrafo de um contrato, mais se estimula a busca por brechas. Derivada dessa primeira interpretação equivocada, vem um segundo mito: a existência de “letras miúdas” nos contratos que impedem a compreensão do conteúdo pelo consumidor. Em uma inequívoca demonstração da inutilidade do excesso de regulação, essa avaliação continua a guiar a opinião pública sobre a transparência dos contratos, embora desde 2009 vigore instrução normativa (1) que determina até a fonte e o tamanho da letra a ser utilizada em tais contratos – Times New Roman 12 – utilizada pela maior parte dos veículos impressos de comunicação. A inteligência do consumidor é subestimada a ponto de levar a ANS a editar o “Guia de Leitura Contratual”, de motivação autoexplicativa, igualmente editado em Times New Roman 12. 

                Sem querer correr – e já correndo – o risco de cair no extremo oposto, considero que toda regulação governamental deveria inspirar-se na Constituição dos Estados Unidos da América, que tem sete artigos e recebeu apenas 26 emendas ao longo dos últimos dois séculos. Esclareço, portanto, que meu objetivo neste artigo não é negar o avanço que representou a passagem de uma lógica regulatória totalmente prescritiva para a atual, mais preocupada com princípios. Essa sempre foi uma reivindicação das seguradoras, que têm, atualmente, uma flexibilidade inédita na criação e comercialização de produtos – exceção feita à saúde suplementar, que será abordada adiante.

O ponto é que, em seu conjunto, os avanços recentes feitos pela Superintendência de Seguros Privados (Susep) não deverão ter maior impacto sobre a receita anual do setor, hoje equivalente a 6,7% do PIB (ou 3,7%, excluindo-se a Saúde Suplementar). E isso não acontece porque a população brasileira não tenha a cultura do seguro. A ausência dessa cultura tornou-se uma lenda – mais uma! –, como demonstram os números. Em plena pandemia da Covid-19, o setor confirmou a tendência de crescimento acima do Produto Interno Bruto (PIB) per capita. Até agosto de 2021, os seguros patrimoniais apresentaram crescimento de 17,2% sobre o mesmo período do ano anterior e, dentre eles, os residenciais responderam por aumento de 16%. O seguro prestamista, que garante a quem perde o emprego a possibilidade de honrar seus compromissos elencados em contrato, registrou aumento de 14,7%. Ou seja, não se trata de uma população que não entende a importância do seguro, mas de uma população que não tem acesso a esse importante mecanismo de proteção social.

Os números falam por si. De 2011 a 2020, a economia brasileira praticamente ficou estagnada, com crescimento residual de 0,3%. Em 2020, o consumo das famílias despencou 5,5% em relação a 2019, e este ano caiu mais 1,7% no primeiro trimestre. 73% dos brasileiros ganham até dois salários-mínimos. É esse o pano de fundo, e é preciso ouvir o que pensa, quer e pode esse consumidor. Dois exemplos objetivos, que explicito a seguir, explicam o problema que considero mais importante: o microsseguro, voltado para o atendimento às camadas mais vulneráveis da população, e o seguro-saúde.

O microsseguro é uma salvaguarda para o patrimônio das pessoas com renda menor e pode reduzir o impacto negativo dos imprevistos financeiros em suas vidas. É, também, um produto que tem vocação para complementar os programas de proteção social do Estado. No entanto, embora reconhecendo os avanços do marco regulatório dos microsseguros editado em agosto deste ano, e tendo por óbvio que ainda é cedo para avaliar seu impacto, volto a bater em uma tecla importante: é preciso promover mudanças na distribuição e nos custos de transação da oferta de tais produtos. A redução desses custos é a chave para atender a quem mais necessita, fazendo o produto chegar a quem mais precisa.

O acesso é também o grande desafio para a saúde suplementar, segmento que enfrenta ainda uma regulamentação pesada e antiga. É preciso uma discussão que não se limite ao formalismo do marco legal, mas que vá ao encontro do que a população diga necessitar. Precisamos facilitar a vida das pessoas, inclusive incrementar a transparência dos resultados das linhas do cuidado assistencial e o acesso à tecnologia digital.

Acompanhei de perto as discussões que resultaram na Lei nº 9.656, de 1998. Passaram-se 23 anos e continuamos às voltas com as mesmas questões. As falhas regulatórias são as mesmas, as falhas de compreensão também. Não se pode esquecer que o setor privado de saúde nunca vai abranger a população inteira. Para isso, existe o SUS. Mas o sistema privado precisa abrir acesso, ser mais inclusivo, para que ele possa atender melhor as pessoas e incluir o maior contingente possível da população.

 Para contribuir nesse debate, listo aqui três pontos que, a meu ver, devem ser prioritários na estratégia de aumentar a abrangência da saúde suplementar.

  • Racionalidade da incorporação tecnológica: é preciso haver um sistema de avaliação independente de custo-benefício da introdução de procedimentos, medicamentos, equipamentos, tecnologias. Repetindo, somos uma sociedade pobre. Dar acesso a mais gente exige racionalização e redução de custos.
  • Prioridade para a atenção primária: é preciso reduzir o uso das tecnologias caras para garantir o básico a mais gente.
  • Revisão do modelo de remuneração dos serviços médicos: o setor é intensivo em capital, em tecnologia, e remunera por quantidade, em vez de qualidade e cada vez mais isso drena recursos para uma medicina mais sofisticada, tirando espaço da atenção primária de saúde.

Estamos vivendo a promessa de uma revolução no sistema de seguros. O open insurance, que a exemplo do que começa a ocorrer no open finance, promete facilitar as transações entre partes para dar maior poder de escolha às pessoas.  É aí que entra um tema inescapável: a subsegmentação – ou modulação de coberturas. Lembremos que a citada Lei nº 9.656 foi automaticamente modificada por Medida Provisória, assemelhada aos Decretos-Leis do período pré-democratização. O tema então havia saído da Câmara em 1998, com um texto que obrigava as empresas a oferecer o plano completo, com consultas, exames e internação, porém podiam ter em carteira outros produtos. Ou seja, o consumidor podia optar. O resultado final, que incorporou 44 edições da Medida Provisória, fez com que o assunto resultasse em um modelo engessado que vigora até hoje.

Teoricamente (mais um mito), só podem existir cinco tipos de plano: planos referência (os completos), ambulatorial, hospitalar com ou sem obstetrícia e odontológico. As regras atuais permitem apenas fazer combinações entre as segmentações assistenciais disponíveis e, ainda assim, na prática, existem apenas os planos referência e os odontológicos. Com a subsegmentação, seria possível oferecer produtos adequados às necessidades e às capacidades de pagamento de cada indivíduo ou empresa.

Com a chance de nova formatação nas coberturas, poderiam ser ofertados produtos verdadeiramente ambulatoriais, que cobririam consultas e exames simples, assim como opções específicas para terapias, produtos odontológicos e hospitalares – para os quais, é bom registrar, fica preservada a mesma cobertura prevista no atual arcabouço regulatório e legal. A cobertura de urgências e emergências, assim como a de exames e terapias complexas, deve estar vinculada exclusivamente aos produtos hospitalares, sob pena de inviabilizar os ambulatoriais, como ocorre atualmente.

Precisa ser considerada também a alternativa de o conjunto de procedimentos e eventos em saúde cobertos pelos planos poder variar conforme a região. É importante que as operadoras possam modular o que é ofertado, a fim de adequar disponibilidades e preços regionalmente. Isso permitiria maior quantidade de opções de produtos oferecidos. Um maior grau de liberdade certamente produzirá melhores resultados para todos, dentro de uma estratégia mais vantajosa para o consumidor: quanto mais escolhas, mais condições haverá para viabilizar a cobertura de saúde que se adapte a suas necessidades diante de suas possibilidades orçamentárias.

Para viabilizar a flexibilização, os contratos deverão ser ainda mais claros, explicitando os procedimentos cobertos e excluídos. Também deverão se consolidar práticas como a coparticipação, que faz o consumidor ter conhecimento e arcar com parte do custo de cada procedimento. São mudanças que certamente contribuirão para o avanço da medicina privada no Brasil, beneficiando mais consumidores e contribuindo para desafogar o sistema público de saúde.

Como contraponto, e para lembrar o potencial desse mercado, gostaria de lembrar como a saúde privada brasileira avançou nesse período. De 2007 a 2020, a arrecadação da saúde privada cresceu 4,5 vezes. Estamos falando de uma taxa superior a 10% ao ano. O PIB cresceu 70%, ou uma taxa anual de 1,3%. Isso quer dizer que o volume de consultas, exames, terapias, internações, atendimentos, medicamentos, equipamentos, tecnologias cresceu naquela fantástica proporção. Houve então um extraordinário avanço no cuidado da saúde das pessoas. E não foi só em volume. Foi em qualidade também. Isso está investido em infraestrutura médica, tecnologia, cuidado, pessoal. A medicina brasileira não tem nada a dever à praticada no resto do mundo, inclusive a dos países mais desenvolvidos. Os hospitais e laboratórios privados, que estão nesses números de crescimento, clínicas de diagnóstico, profissionais de saúde, toda essa imensa engrenagem é remunerada com o dinheiro das pessoas que contratam planos e seguros de saúde.

Do mesmo modo, o desempenho recente dos microsseguros mostra enorme potencial desse segmento. Ainda que com todas as limitações, entre 2016 e 2020, os prêmios dos produtos classificados nos ramos de microsseguros no Brasil cresceram mais de 55%, passando de R$ 228,4 milhões para R$ 355,4 milhões nesse período, avanço quase duas vezes superior ao observado para o segmento de Danos e Responsabilidades, que cresceu 29%. No mesmo período, o número de seguradoras que emitiram prêmios de microsseguros, passou de 17 para 24, em 2020. Outro sinal importante é que outros produtos, que não estão classificados formalmente como microsseguros, vêm ganhando apelo junto às populações com renda mais baixa, como o residencial, que entre 2016 e 2020, cresceu 35%. 

Estas considerações são mais uma contribuição do setor de seguros à inclusão de mais brasileiros ao fundamental sistema de proteção contra riscos. Lembramos que, com ativos financeiros da ordem de R$ 1,3 trilhão, o equivalente a 23,5% da dívida pública brasileira, o setor é parceiro estratégico do poder público em áreas nevrálgicas como a infraestrutura. Lembramos também, no entanto, que investimentos privados demandam ambiente de segurança jurídica e previsibilidade, regido por marcos regulatórios atualizados. A CNseg reconhece as dificuldades atravessadas pelo Brasil, lembrando que, nas últimas décadas, redemocratizamos o País, derrotamos a hiperinflação, resistimos a grandes terremotos financeiros internacionais, fizemos as reformas trabalhista e da previdência e avançamos na regulação de serviços essenciais, como energia, telefonia e saneamento. Neste final de 2021, queremos reafirmar a confiança em nosso País. 

*Marcio Serôa de Araujo Coriolano é economista e Presidente da CNseg, a Confederação Nacional das Seguradoras