Tecnologias como Inteligência Artificial (IA), carros autônomos, big data, machine learning e tantas outras avançam a passos cada vez mais rápidos, gerando fortes impactos na maneira das pessoas se relacionarem e trabalharem. Para tentar entender um pouco melhor como elas já impactam no presente e impactarão no futuro o mercado segurador, o Portal da CNseg conversou com o bacharel em economia pela PUC-Rio e doutor em matemática pelo IMPA, com pós-doutorado pela Universidade de Paris XIII, Flavio Abdenur, que recentemente já havia feito uma apresentação sobre IA para a Comissão de Inteligência de Mercado da CNseg.

Confira abaixo a entrevista.

Fala-se que a IA impactará diversas indústrias e reduzirá drasticamente a mão de obra em diversas profissões, que vão de motoristas e atendentes de call-center a tradutores e advogados. Que funções de trabalho dentro do mercado segurador, na sua opinião, serão mais impactados?

Análise de risco tende a ser uma das áreas mais afetadas. Os métodos de machine learning, quando aplicados a grandes conjuntos de dados de alta qualidade, geralmente geram previsões muito melhores do que as geradas via métodos de estatística tradicional como regressão logística. Os analistas especializados em estimar probabilidade de sinistros que não aprenderem data science e machine learning tendem a ficar obsoletos em relativamente poucos anos.

Como a IA deverá impactar as atividades dos profissionais do mercado segurador que conseguirem manter seus empregos? Como ela alterará a maneira de se trabalhar nesse mercado?

Com a disponibilidade cada vez maior de dados coletados, inclusive via canais não-tradicionais como redes sociais, os profissionais da área terão que se adaptar cada vez mais à interação online segmentada pelas características específicas dos clientes e mediada por algoritmos. Ligar para o cliente e conquista-lo com base na conversa será cada vez mais difícil. O pessoal mais jovem, em particular, que ter um app, ler e contratar o produto de maneira fácil, rápida, sem papelada.

Na sua opinião, a massificação da IA poderá trazer novas oportunidades para o mercado segurador? Que tipos de seguro podem surgir e quais devem desaparecer?

Difícil prever quais modalidades vão surgir ou desaparecer. Dada a importância crescente de algoritmos e do mundo digital, proteção contra hackers e vazamentos de dados podem se tornar relevantes. A disponibilidade de cada vez mais dados permite análises de riscos e, portanto, precificação de contratos, cada vez mais precisos, mas pode haver conflitos com reguladores que querem proteger a privacidade dos indivíduos.

O que as empresas do mercado segurador precisam fazer hoje para se prepararem para esse novo mundo onde a IA estará muito mais presente em nossas vidas?

Automatizar e facilitar cada vez mais os serviços; investir em coleta e curadoria cuidadosa de dados de diversas fontes, inclusive não-tradicionais, tendo sempre os devidos cuidados com segurança e privacidade; contratar e manter boas equipes de data science afinadas com a ponta da tecnologia; migrar de tecnologias proprietárias como MATLAB, SAS e Stata para linguagens open-source como R e Python, que são mais flexíveis e evoluem muito mais rapidamente do que as proprietárias.

Que novas habilidades a serem desenvolvidas você considera fundamentais para os jovens que pretendem ingressar no mercado profissional?

Para analistas, acrescentar programação, big data e machine learning à estatística tradicional. Para quem lida com o público, proficiência com plataformas e interfaces online.

Os carros autônomos estão cada vez mais eficientes e, em um futuro não tão distante, deverão substituir massivamente os carros com motorista. Quando isso acontecer, na sua opinião, como será a dinâmica do seguro de automóveis? Ele ainda existirá? Quem será responsabilizado pelos acidentes? Quem contratará as apólices?

Apesar das manchetes recentes sobre acidentes com carros autônomos, tudo indica que uma vez nas ruas eles serão muito mais seguros do que os guiados por humanos. No médio e longo prazos isso deve diminuir muito a demanda por seguros de carros e veículos motorizados. No Brasil, com todas as nossas deficiências tecnológicas, de infraestrutura, e trânsito caótico, isso deve demorar mais para acontecer do que nos EUA ou na Europa, mas vai acontecer. Daqui a 30 ou 40 anos o mercado de seguro para veículos quase certamente será substancialmente menor do que é hoje.

Assim como Stephen Hawking e Elon Musk, você acredita também que a IA pode ser um perigo para a humanidade ou nós saberemos lidar com segurança com essa tecnologia tão poderosa?

Considero cenários apocalípticos altamente improváveis, mas é bom haver pensadores como o Nick Bostrom de Oxford e o Stuart Russell de Berkeley estudando a segurança de IA em cenários extremos. O Russell em particular é um importante pesquisador em IA que está liderando um movimento pela proibição de armas autônomas, que a tecnologia deve viabilizar em poucos anos.

Mas diria que o risco maior no médio prazo está no mercado de trabalho. Muitas áreas antes imunes à automatização podem ser afetadas muito rapidamente, em questão de uma ou duas décadas. São transições muito mais velozes do que a ocorrida na Revolução Industrial, que, se por um lado foi muito profunda – antes mais de 70% da população trabalhava no campo, hoje são menos de 5% em países desenvolvidos – foi também muito lenta para os padrões de hoje, tendo demorado mais de um século.

A transição do campo para a cidade levou várias gerações. Em geral o pai se aposentava no campo e o filho migrava para a cidade. Com a nova onda de automação, muitos tipos de trabalhadores profissionalmente maduros serão obrigados e mudar de ramo em plena carreira. Pode ser um processo doloroso, tanto do ponto de vista individual quanto social, com possíveis consequências políticas. Tenho dado muitas palestras e, em breve, devo publicar um artigo (junto com o Pedro Cavalcante Oliveira) no site do Instituto Mercado Popular sobre esse tema.

Além das grandes corporações, como Google e Facebook, China e Rússia também têm investido fortemente em IA, a ponto de Putin já ter declarado: “A inteligência artificial é o futuro, não apenas para a Rússia, mas para toda a humanidade. Ela chega com oportunidades imensas, mas também com ameaças que são difíceis de prever. Quem se tornar o líder nessa área vai ditar as regras no mundo”. Você acredita que a IA poderá aumentar ou reduzir as desigualdades no mundo? Esse mundo será mais seguro ou inseguro?

Atualmente, o líder inconteste são os EUA, graças essencialmente à combinação de grandes empresas de tecnologia – principalmente Google, Amazon e Facebook – com uma constelação de universidades de primeira linha, como Carnegie Mellon, MIT e Stanford. Há alguns países desenvolvidos relativamente pequenos, especialmente Israel, Inglaterra e Canadá, que também estão na ponta. A China está investindo e progredindo rapidamente na área e pode ameaçar a liderança dos EUA no futuro não muito distante. 

Diria que países que ficarem na ponta de IA tendem a ter vantagens econômicas substanciais sobre os retardatários. Nesse sentido, IA pode aumentar a desigualdade entre países. Não sou muito otimista quanto ao Brasil nesse quesito, aliás.

As potenciais aplicações militares de IA podem ser muito eficazes, especialmente em regimes onde não há grandes pudores sobre armas autônomas e drones conduzidos por IA. Preocupa esse entusiasmo do Putin pela “IA como arma”, e o regime Chinês também não é lá dos mais democráticos. Novamente: cenários catastróficos são improváveis, mas é preciso estar atento.

Flavio Abdenur é bacharel em economia pela PUC-Rio e doutor em matemática pelo IMPA, com pós-doutorado pela Universidade de Paris XIII. Trabalhou durante 10 anos como matemático acadêmico, primeiro no IMPA e posteriormente como Professor do Quadro Principal do departamento de matemática da PUC-Rio. Após a transição para a iniciativa privada foi Analista de Risco Sênior da Ventor Investimentos e Analista Quantitativo da Vérios Investimentos. Flavio é fundador e consultor-chefe da SLQ Soluções Quantitativas (www.slq.com.br) uma consultoria de data science, estatística e machine learning aplicados a finanças, previsão e risco.

Fonte: CNseg