Poucos setores da economia têm sido tão vigiados e criticados, nos últimos anos, quanto o de planos de saúde. Somente em 2013, a Agência Nacional de Saúde (ANS) recebeu mais de 72 mil reclamações de associados dos 1,2 mil operadores em atuação no País, uma alta de 440% na comparação com o ano anterior. Para Marcio Coriolano, presidente da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) e da Bradesco Saúde, a maior seguradora da área médica nacional, existe um problema sistêmico na indústria da saúde privada, que vai muito além do alcance das seguradoras. “O atual modelo de saúde privada não se sustenta”, diz, referindo-se aos custos crescentes do setor. Confira, a seguir, sua entrevista.

DINHEIRO – Como o sr. avalia o atual momento do setor de planos de saúde? As reclamações aumentam na mesma proporção do crescimento das empresas.
MaRCIO CORIOLANO – 
Nosso setor é curioso, principalmente em relação à regulamentação e à fiscalização. Antes da criação da Agência Nacional de Saúde (ANS), há 15 anos, não existiam regras. Ninguém sabia sequer quais eram as empresas atuantes. Por isso, acho compreensível que se façam muitas críticas ao setor. Agora, existem regras, mas elas mudam o tempo todo. Essas mudanças nos atrapalham. Estamos sempre precisando nos acostumar com uma série de regras novas impostas pelo governo.

DINHEIRO – Falta profissionalização?
CORIOLANO –
 A própria falta de regras tornou o setor de planos de saúde complicado aos olhos da população. Antigamente, não se tinha informação de nada e muitas vezes o beneficiário pagava o seguro durante anos e, quando precisava, não conseguia usá-lo. A partir do surgimento da ANS, criaram-se regras duras, mas básicas. Passou-se, por exemplo, a exigir um capital financeiro mínimo das empresas. Parece trivial, mas isso tirou diversas empresas ruins do mercado. Muitas não tinham nem os requisitos básicos para começar a operar. Só que houve muitas outras alterações na regulação que mexeram, e muito, na forma com que trabalhamos.

DINHEIRO – Quais foram essas alterações?
CORIOLANO – 
Ocorreu a padronização dos contratos do setor. Isso exigiu uma adequação muito forte. Antes, as muitas empresas nem trabalhavam com contratos. Depois, foram obrigadas a garantir o atendimento. Então, cada vez mais, as regras foram ficando mais rígidas. Esse ciclo de ajustamento acaba provocando um estresse. As grandes conseguem uma escala maior de beneficiários e, consequentemente, diminuem seus riscos, mas os menores ainda sofrem. O governo federal via o nosso setor como uma terra de ninguém. Por isso criamos a FenaSaúde, para representar as operadoras.

DINHEIRO – Existe um pedido de CPI na Câmara dos Deputados, que pode ser instaurada em breve, para apurar supostas irregularidades cometidas pelos planos de saúde. Qual é a sua posição sobre isso?
CORIOLANO – 
Como ainda não existe uma CPI contra os planos de saúde, não há o que comentar.

DINHEIRO – O governo ainda encara o setor como terra de ninguém?
CORIOLANO – 
Não vê mais nem tem motivos para isso. Diferentemente de outros órgãos reguladores, a ANS teve um avanço extraordinário, provendo informações aos beneficiários. O consumidor não pode se queixar de falta de informação. Está tudo na internet: as avaliações de cada seguradora, quais operadoras foram suspensas, os processos em andamento e a nota de cada uma delas. Pode até não existir muita divulgação, mas o cidadão que pesquisar irá encontrar tudo isso.

DINHEIRO – Então o cliente é muito passivo em relação aos planos de saúde?
CORIOLANO – 
O único interesse do beneficiário é saber se será atendido ou não, e pagar o menor preço possível. Mas não é tão simples assim. Toda vez que fechamos um contrato, precisamos revê-lo anualmente. Não apenas por causa da inflação, mas em razão do reajuste dos custos. Todos os anos entram no mercado novas tecnologias, novas técnicas, novas máquinas, novos isso e novos aquilo. Aí, o que acontece? A população fica enlouquecida de raiva quando vê um aumento superior ao de índices como IPCA e IGPM, em seus planos.

DINHEIRO – Mas os reajustes, geralmente, superaram a capacidade de pagamento da população. Alguns planos coletivos promoveram aumentos de até 70%, em 2014…
CORIOLANO – 
Posso afirmar que, na questão dos reajustes, os planos de saúde são vítimas, não vilões. Costumo dizer que nenhum operador gosta de reajustar preço. Só se for maluco. No entanto, é uma necessidade de saúde financeira. Nossa tarefa é explicar à população que esses aumentos acontecem por causa da demanda pelos planos. Foram as pes­soas que resolveram consumir e aumentar a cobertura. Elas é que querem fazer mais check-ups e exames. A contrapartida é o aumento de preço. Além disso, precisamos combater outra gran­­­de ameaça, que é o aumento do custo médio hospitalar. No atual ritmo de alta dos custos, o setor privado de saúde não é sustentável.

DINHEIRO – Se o setor privado não é sustentável, o que pode ser feito?
CORIOLANO –
 É sabido que o governo, sozinho, não tem condições de suprir as necessidades de saúde da população. Por isso, precisamos dialogar e encontrar alternativas para equilibrar sistemas público e privado de saúde, unindo os elos da cadeia produtiva. Os reajustes que estão chegando ao consumidor estão se formando lá atrás. Não é culpa das operadoras. Está na indústria de medicamentos, de artefatos e equipamentos médicos, nos custos operacionais, em geral. Hoje, a lógica do sistema está inadequada. Por exemplo, o médico, o laboratório e o hospital são remunerados pela quantidade de serviços que executam. Nos EUA, o sistema é baseado na efetividade, não no número de intervenções. Para sobrevivermos em longo prazo, a discussão precisa começar agora. Dife­rentemente do que ocorre em outros lugares do mundo, a ANS abre a revisão de procedimentos a cada dois anos. Qualquer empresa do ramo pode oferecer um tipo de serviço ou procedimento, que acaba se tornando de cobertura obrigatória, pela ANS, para todos os planos. Isso tem preço.

DINHEIRO – Alterar a remuneração dos médicos é uma forma de tornar a saúde privada sustentável?
CORIOLANO – 
Temos de copiar o modelo implementado em grande parte do mundo. Sempre que houver a inclusão de um novo procedimento, é preciso fazer uma boa avaliação de custo-benefício. O que traz benefício ao sistema tem que continuar. O que não traz nem precisa ser analisado. Hoje, qualquer novo procedimento médico entra na lista de obrigações das operadoras de saúde.

DINHEIRO – O que seria “qualquer novo procedimento”?
CORIOLANO – 
Tratamento de fertilidade, por exemplo, beneficia o coletivo ou só algumas pessoas? Faz sentido todos pagarem para apenas poucas pessoas se beneficiarem? O seguro funciona assim: todo mundo paga igual por determinada cobertura, utilizando todos os benefícios ou não, e uma infinidade de outros exemplos. A ANS tem que analisar melhor antes de colocar essas obrigações no sistema. Outro órgão é a Anvisa. A cada dia, a agência solta uma pancada de solicitações de medicamentos e materiais. O que deve ser discutido não é apenas a pertinência daquele remédio, mas o preço. O preço é adequado? Qual é a margem de comercialização que as empresas colocam no Brasil? O governo precisa intervir no setor de saúde inteiro, não apenas nas operadoras. Não é a operadora que define custos, ela apenas os financia.

DINHEIRO – E quanto às críticas por falta de transparência e até mesmo de qualidade? Existem inúmeros processos contra as empresas de plano de saúde.
CORIOLANO – 
Existem bons e maus gestores. Ficamos frustrados com essas críticas ao setor, como se ele fosse uma coisa só. Mas não. A própria imprensa tem que citar os nomes das operadoras ruins. Por outro lado, os clientes têm uma arma poderosa nas mãos: o poder de escolha. Hoje, cada vez mais se divulgam elementos para os consumidores julgarem o que é melhor. Eles podem sair da inércia e fazer sua avaliação.

DINHEIRO – Mas até as grandes operadoras são denunciadas e processadas…
CORIOLANO –
 Não vejo dessa forma. O setor tem problemas a equacionar, em decorrência de todas as situações que eu já citei. Não é uma cadeia produtiva típica. Mas, ao mesmo tempo, poderia se aproximar da indústria automobilística, na qual um agrega valor ao outro na cadeia. No setor de saúde, não existe essa solidariedade, pois a empresa que fabrica o medicamento não liga para quem está comprando aquele remédio. Os hospitais também não são solidários com a operadora. É por isso que eu digo que a possibilidade de arbitramento dessa relação é mais difícil. Alguém tem de tentar mudar essa situação.

DINHEIRO – Alguns setores da sociedade criticam a desoneração do setor de saúde privada. Como o sr. vê essa posição?
CORIOLANO – 
Aumentar os impostos do setor é uma decisão burra. O segmento de saúde suplementar, no ano de 2013, gastou quase R$ 100 bilhões em todos os tipos de tratamento. Isso significa que o SUS deixou de desembolsar R$ 100 bilhões. Quanto é a renúncia fiscal aos planos de saúde? É merreca, se comparada a esse valor. Se o governo eleva a carga tributária ou diminui, afeta os custos dos SUS. É matemática.

DINHEIRO – A expectativa de vida dos brasileiros subiu para 74,9 anos, em 2014, ante 71 anos, em 2002. Como isso afeta os negócios da saúde?
CORIOLANO – 
Isso nem é uma questão de agora. O grande problema é que mais gente idosa significa encarecimento dos tratamentos e maior tempo de internação. Mais gente idosa significa menos gente jovem para financiar os tratamentos dos mais velhos. Então, por isso, volto a bater na tecla de que devemos cuidar desde hoje dos custos da saúde. Precisamos estar preparados para quando os problemas cumulativos da longevidade se apresentarem com mais força.

DINHEIRO – O sr. acredita na possibilidade de colapso do setor de saúde com o aumento da população idosa?
CORIOLANO – 
Não chega a tanto. Como a história da humanidade mostra, a sociedade se ajusta rapidamente aos problemas. Só que não podemos esperar que esse ajuste demore tanto. Temos que ser protagonistas da história em vez de esperar para se adaptar. Este é o momento. Temos muita clareza de onde estão os problemas, só que precisamos agir.

Fonte: Istoé Dinheiro